Conexões: Lapa-Berlim




Tinha em uma das panturrilhas Kurt Vonnegut e na outra, Paulo Coelho.  Achei uma ( ) feliz ( ) estranha ( ) insuspeita coincidência e só podia ser ela mesma... Tatuar tão díspares figuras... – não tinha como ser outra pessoa. Eu não iria desperdiçar a oportunidade, a mulata – antes de tudo um estado de espírito que características étnicas-sociais – sambava como desenvoltura. Os cabelos mudaram, um corte batido curto, na altura da nuca deixando aquela penugenzinha... O aloirado de quando a conheci dera lugar a um tom de ruivo quase verdadeiro, combinando com as sardas do rosto e do colo, que era exibido pelo decote canoa da camisa listrada (tipicamente de turista) cortada à mão, que indo de uma ponta a outra do ombro, deixava à mostra parte dos seios diminutos. Olhei para a palma da minha mão. Olhei para os seios: cabiam direitinho. Nossos olhos se encontram. Vi um riso. Reconhecimento? Usava um shortinho bobo e apertado, a cintura marcada descia para o quadril largo e a bunda arrebitada – ancas de parideira! Ela tinha um quê de Franka Potente. Fui até ela. Fingiu susto, girando sobre os calcanhares, quando toquei o ombro ossudo saliente e sardento. Gritando sobre o compasso da bateria, perguntei:

– LEMBRA-SE DE MIM? DE BERLIM... *

Ela não parou de dançar, mas me dava atenção, sambando na minha frente, gesticulando o braço como duas serpentes, aliás, havia duas serpentes tatuadas em cada braço. O vermelho cor de cereja do batom atraindo toda a minha atenção. Não me respondeu e eu continuei (não tinha como ser outra pessoa) com minhas suspeitas:

– TALVEZ ENTÃO DE FRANKFURT... ESTIVE NA ALEMANHA HÁ DOIS ANOS...

(A bateria vez uma paradinha, ela rebolou até o chão) Meus olhos vidrados, escaneando o corpo: muito branca, veias azuis, verdes, sardas, manchas de sol, marca de biquíni!

– QUEM PODERIA IMAGINAR QUE IRÍAMOS NOS ENCONTRAR LOGO AQUI?... NA LAPA... NA LAPA! É ATÉ ENGRAÇADO..., NÃO ACHA?

(Do chão rebolou até o alto, o sambão recomeçando... emulava movimentos eróticos: subia e descia, os músculos das coxas ali rígidos, subia e descia).

– MAS VOU TE CONFESSAR: ESQUECI SEU NOME.

Vislumbrei nos seus olhos pela primeira vez uma ponta de atenção genuína – passou a sambar a minha volta e eu ali. Ela então parou na minha frente e riu:

– QUEM ME CONHECE NÃO ESQUECE MEU NOME.

Eu ri mais para mim do que para ela: saberia dizer até seu sobrenome: Klein- Hoffmann.

– NÃO QUER SAIR PARA CONVERSAR SEM GRITARMOS? TALVEZ LÁ FORA EU CONSIGA ME LEMBRAR DO SEU NO...

Ela não me deixou terminar o gracejo, pegou a minha mão e me tirou da roda. Lá fora uma garoa recém-caída deixava os paralelepípedos boêmios do bairro brilhantes e escorregadios, ela andava com a mesma desenvoltura do samba de antes, eu seguia; nos perdíamos propositadamente entre as ruas, vielas e becos da Lapa – a mais escura nos serviria.  A Lapa é famosa, é badalada, cool, agitada, essas merdas todas, e para mim que já zanzou pela metade do mundo, a Lapa é só mais um lugar para se esquecer no dia seguinte de porre. O bairro, já teve seu inferno astral e, hoje, mais uma vez se reinventa e por ironia (ou não) perde a sua cor local: boemia autêntica... samba de raiz... berço da malandragem carioca (mais merdas assim) e como todos os locais da moda sempre há um lugar ou outro que conserva a velha aura. Era dessas babaquices que conversávamos enquanto andávamos observando os bares pequenos e antiquados; ela como o mesmo pensamento de desencanto do lugar: o mesmo papo furado pseudo-inconformado, algo para falarmos enquanto andávamos... Ela decidiu onde pararíamos e entre os bairros da Lapa e Glória deu nosso entendimento. Conversamos mais alguma coisa sobre as conexões Lapa-Berlim e percebemos que não tínhamos nada a dizer um ao outro, como qualquer outro casal que se (re)conhece na noite. Ela então me mostrou as novas tatuagens, as serpentes, enormes e cores vivas, dando voltas em cada um deles e adentrando pelas costas dos braços.

– Onde elas terminam? – perguntei com sincera curiosidade.

Ela riu, deu as costas e levantou a blusa folgada. As tatuagens seguiam na direção dos ombros, um pouco abaixo das omoplatas, encontravam-se e fundiam-se os dois ofídios na bem demarcada coluna vertebral e como uma cobra só, desciam até a base do cóccix – era uma coisa de louco... Excitante só de olhar. Não resisti ao que queria desde o momento em que reconheci Kurt Vonnegut e Paulo Coelho. Numa pegada apertada pela cintura a envolvi, uma risadinha nervosa autorizava a conduta. Esfregava a barba por sua nuca, mordiscava sua orelha – um gritinho de nervoso. Virou-se bruscamente e tomando o meu rosto em suas mãos, me beijou com demasiada força. O abraço era o mesmo de Berlim, a maneira das mãos as mesmas, o cheiro da pele o mesmo, a língua... – não tinha como ser outra pessoa – toda ela a mesma mulher. Foi então que levando para uma parte mais escura da rua, entre dois sobrados centenários, nos pegamos. (E daí se pudessem nos ver? Não seria a primeira vez para ninguém: eu, ela, moradores voyeurs). Ela desafivelava meu cinto com dificuldade; a qual eu não tive para tirar a blusa e o sutiã dela – sim, os seios cabiam corretamente em minhas mãos. E como no apertado banheiro de uma boite alemã onde nos conhecemos, ela se virou para mim, empinando com talento a bunda branca crescente feito lua e eu no escuro podia claramente delineá-la por completo: alisei-a por um momento hipnotizado... logo fui tomado pelo óbvio: terminei com o cinto, nem me dei conta da cueca...
Enquanto transávamos, ela dizia coisas em um alemão incompreensível para mim, talvez um dialeto, o que só me deixava mais excitado e fizesse tudo com mais vigor... arfávamos juntos e sincopados, acariciava os seus seios eternamente tungidos, beijava suas costas, segurava com força seu quadril... E a bunda enorme na minha frente, eu até me sentia pequeno diante dela. Apoiadas nela, minhas mãos escorregaram para as coxas – afinal eu não tinha esquecido Berlim. Sentia os músculos das pernas, os dedos vagarosamente seguindo para o que havia entre elas...

– O que você quer ai – me disse ela num arremedo de português afetado com alemão.
– Você sabe bem...

Encontrei e ela riu, o que eu fazia era tocá-lo – era duro... pulsante. Abruptamente ela ergueu todo o corpo e girou, me beijou e me mordeu o lábio, senti o sangue... ela me empurrou com força contra a parede, dessa vez eu fui pego pela cintura... me virou com calma... um silêncio se fez na Lapa e por um momento nada se mexia – como naquela vez em Berlim, ouvi que cuspia em sua própria mão. Encostou o corpo no meu corpo e enquanto me penetrava com carinho, falou no meu ouvido com a sua voz grossa e vigorosa:

– Joachim Klein- Hoffmann, e da próxima não esqueça mais meu nome.

  


* Traduzido do alemão.

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