Homenagem a Ian Curtis



Há trinta e dois anos morria Ian Curtis.

Ou sempre esteve lá...



Lá vamos nós outra vez...
É tão frustante e cansativo... Tentar pedir desculpas é sempre voltar ao começo. E retornar a momentos de dor bem mais antigos, supostamente curados e cicatrizados... Há culpa por toda parte. Tão bem mais distantes, quase pueris, e vir caminhado este caminho sentindo as dores outra vez, mais espinhos no meu bolso. Mais outro e outro... Andando descalço por sobre pedras, perdas, separações, decepções e todo o resto. Faz parte do projeto! A sua cabeça que fique com o vozerio depois... Daí você pensa: por quê? Qual o sentido de encontrar alguém, de querer fazer bem a este alguém, de fazer este alguém confiar piamente em você, para num piscar de olhos, num digitar de senhas, num erro latente figurado em palavras falsas, por a perder o que vinha sendo construído? Castelo de cartas são mais firmes... É mesmo necessário distender-se, tensionar para verificar até aonde vamos com isto? Estamos buscando algum limite aqui? Restará alguma coisa boa o suficiente capaz de suplantar o resto? É tudo tão desmedido também... como tudo vem embolorando as coisas boas, fazendo a todos virarem o nariz, e deixando evidente só o lado ruim de tudo. De mim, a minha letargia congênita; de você, sua pulsão por autodestruição. Será possível uma vida normal? Sem revelações bombásticas a todo instante? Venho tentando lutar contra mim mesmo e ser positivo. Mas é impossível ser indiferente aos sinais, a perfeita sintonia, as horas diante do computador conversando, ler um sinal no rosto, numa pinta, num traço de expressão, numa sobrancelha... é impossível ser indiferente ao beijo, ao toque da pele que arrepia, aos sexo sem restrições. Será que tudo isto são mesmo sinais e evidências de somamos uma mais um? Toda essa luta, essa dor... tem que ter um objetivo maior. E me arrepia a espinha só de pensar na possibilidade de isto não significar nada, de ser apenas um impressão muito forte, motivada pela carência mútua que cada uma possuía. Noto isto só agora...
Ou sempre esteve lá?

Encardidos (da série "O livro")


Num curtíssimo tempo atrás, escrevi um conto que publiquei aqui, no FB e que chamou a atenção dos amigos do Negodito. Este que aqui vai não é uma continuação, mas também não é independente... talvez seja o início de uma série (se o tempo, saco, tesão assim permitirem).




A violência com a qual esfregava os dentes era desmedida, Túlio queria limpar algo que não estava lá. A boca escancarada, a arcada fechada numa mordida capaz de trincar todos os corretos e perfeitos trinta e dois dentes; os músculos do rosto impelidos a ficarem daquele jeito, indefinidamente, até ele terminar. Só se ouvia a água corrente da torneira e o rush-rush-rush das cerdas... Sentia-se sujo, encardido.
“Está tudo bem?” — Tânia perguntou, do lado de fora.
Zero de resposta, apenas o som da escovação. De súbito, abriu a porta, Tânia no caminho, empurrada no sofá, Túlio apenas abriu a porta e saiu...
Sem entender nada e chocada com a reação do namorado, o olhar de Tânia se perdia na porta aberta; do banheiro, a torneira ainda aberta, sentiu um cheiro forte, levantou-se e quando entrou suas pernas reagiram antes e tremiam sem controle. A louça agradável e aconchegante digna de uma revista de decoração das paredes manchada de sangue; no chão, antes impoluto e combinando perfeitamente com o restante do ambiente, poças de uma coloração amarelada e viscosa, um cheio acre em todo o lugar — a torneira aberta, tubos inteiros de creme dental usados, a sua escova largada dentro da pia...
“Que merda é essa?...” — foi o que Tânia conseguiu dizer.

~~~

“Então, vamos?” — Túlio assentiu com a cabeça sem dizer nada, sentia-se tonto muito tonto, como nunca estivera antes, nem mesmo em uma noite de pura esbórnia dos tempos da faculdade, ele fora até aquele bar apenas para entregar o livro a sua dona, preferiria um lugar e horários diferentes... um shopping, café, ponto de ônibus, metrô, qualquer porra, mas um bar à noite? Tânia também achou estranho.
“É onde a moça trabalha, o que eu posso fazer se o único momento que ela pode é lá!? Antes eu não fosse educado e ficasse com o livro...” — respondeu ele a namorada, antes de sair e perguntar se também não queria algo da rua. “Só cigarros” — disse ela, ainda achando tudo estranho.
O bar não era nenhum desses inferninhos ou lugares de reputação ambígua que permeiam o cinema e a literatura. O local não estava cheio àquela hora, na mesa de sinuca, dois funcionários do lugar arrumavam as tudo, nem música havia. Túlio vasculhou o lugar e aproximou-se da moça do caixa e perguntou quem era ***
“Sou eu.” — respondeu com um sorriso. Túlio abriu a mochila e já ia entregando o livro quando *** pegou no seu braço e disse, espere, aceite uma cerveja como agradecimento.
Sentaram-se no bar mesmo...
“Sabe, quase morri quando descobri que perdi esse livro... você fuma? Se importa? Foi um presente muito especial...”
“Ele é muito... bonito...” — Túlio não se interessava por livro, mal chegara a olhá-lo, apenas viu quando *** deixou sobre o banco o metrô, ele chegou a dizer: “Moça, seu livro!”, mas a porta fechara, prendendo a voz no vagão, por sorte, no livro um guardanapo daquele bar marcava as páginas 122 e 123.
“É um livro raro, você sabia? Antigo... mais velho que nossas idades somadas. Qual a sua idade?” — perguntou de surpresa.
“Trinta e um...” — respondeu por impulso.
“É muito mais velho que a nossa idade somada! — ela falava como um gato se movia, era tão sexy que Túlio começava a se incomodar de estar ali, a cerveja nem na metade e *** já pedira outra.
“...é mesmo um peso diferente… Comprei de um professor, estava precisando de grana, um viciado, pobre coitado... Feltro, letras douradas, edição limitada, erro na folha de rosto, dedicatória; ainda em bom estado, as páginas amareladas, o preço ainda em réis anotado no canto direito superior, com uma caligrafia feminina que ele não quis apagar... disse que era de alguém importante. Não sei... O que você acha?”
“Olha, também não sei... Escuta, tenho de ir, obrigado pela cerveja...”
“Espere, deixa só te contar umas das histórias que envolvem esse livro...”
Túlio que se levantava, voltou a se sentar, afinal, que mal havia? A cerveja era boa e aquele decote...

~~~

Em certas situações os gestos mais racionais são os mais ilógicos. A primeira coisa que Tânia fez ao se deparar com seu banheiro coberto de sangue, vômito e o que parecia serem vísceras foi tomar um balde, pano e desinfetante de lavanda e, de joelhos nus, começar a limpar aquelas “coisas” incrustadas na aconchegante e agradável louça do seu banheiro. Limpava de maneira cega e quase monástica. A água balde de um vermelho apenas, moscas voavam por cima daquilo que pareciam ser pedaços de alguma carne... demorou muito tempo e os pensamentos começavam a fazer mais sentido e a se preocupar com Túlio... Não sabia a que horas ele voltara, sequer ouviu a porta, e agora estava realmente tensa, que desgraça havia acontecido na noite passada?! Que sangue era aquele? Teria atropelado algum cachorro? — começa a racionalizar... Guardou o balde, o pano pôs de molho, e os desinfetantes acabaram... agora era ela que se sentia imunda e fétida. Tomou um banho quente, muito quente, a pele ardia e viu sangue escoar pelo ralo, sentia-se ainda suja, encardida... Mais uma vez abriu o chuveiro, besuntou a bucha com sabonete liquido, xampu e condicionador, esfregava com fulgor a ponto de escarificá-la, deu por si que chorava... agachou, deitou-se e em posição fetal e deixou a água cair sobre ela... Ficou um sem tempo ali... Levanou-se e sem se dar o trabalho de fechar a torneira saiu e nua, seguiu para a sala, sobre a TV viu o livro que o namorado fora entregar na noite anterior... Era mesmo um peso diferente o daquele livro com feltro verde e letras douradas...
Não sabe o que veio primeiro: o susto, o grito ou o sobressalto ao ouvir a porta irromper com Túlio passando e gritando “Socorro” por ela. Nua, Tânia viu o namorado ser algemado no chão da sala por dois policiais e dali se arrastado, um terceiro se aproximar dela e dizer: “Desculpe senhora.” e dali sair sem dizerem mais nada. Apoplética, Tânia, novamente, não sabia como reagir naquele dia, ficou ali imóvel se ver nada e tendo somente o livro nas mãos.