Dolores
Então fazer a barba. Mais uma vez fazer a barba. Passo a minha mão no meu queixo liso como nos comerciais (mas não aparece nenhuma Juliana Paes® me abraçando pelas costas) e não sinto um pêlo na cara. Um nada que mereça a atenção de ser arrancado, meu rosto não precisa fazer a barba; meu rosto foi liso, agora só as cicatrizes da navalha e das porradas. Uma barba estranha... “E em feixe atado agora o verde trigo. Seguir o carro, a barba hirsuta e branca...” O que Shakespeare quis dizer com essa merda? “Hirsuta e branca”, Shakespeare era um babaca por me deixar pensar essas coisas sobre os textos dele. Ainda assim besunto o pincel e espalho a espuma: eu tenho que fazer a barba, mesmo sem nada na cara. Faço porque arde. Porque ainda vai incomodar quando acabar quando jogar o álcool – amanhã vai ser acetona e depois éter. Faço porque vai escorrer sangue. Porque vai doer – e eu preciso da dor. A dor é uma estranha moeda com quem barganho, ela me faz esquecer e me faz lembrar de você (e que me movimenta). Na verdade eu queria mesmo esquecer – essa seria a dor das outras dores, a dor capital, mas será essa a que você sentiu quando eu larguei você, Dolores?
É essa dor que eu quero experimentar.
É por isso que eu vago daqui pra lá tentando à noite nas ruas encontrar alguém que vai me fazer sentir a mesma merda que você sentiu...
*
Pego o telefone e ligo, ela atende rápido, pergunto o preço e ofereço o dobro se ela fizer o que peço. Ela finge estranhar o pedido como uma atriz iniciante – aquilo é moleza perto do que já pediram a ela, tenho certeza. Ela topa. Na minha casa, no meu quarto, no meu armário ela se veste como Dolores se vestia naquela noite. Saímos. Paro o carro na areia da praia e descemos, damos umas voltas de mãos dadas, eu digo: “É aqui, pode começar.” Ela tira o papelzinho do bolso, está escuro, ela tem dificuldade de ler, a sua dicção é de alguém da 5ª série primária, mas a voz ao menos é parecida. Eu digo a minha fala, é tudo muito artificial, mas eu consigo chorar como Dolores chorou, a puta contratada para encenar comigo não entende muito mas continua – quebro a ficção lembrando que ela tá ganhando em dobro pra fazer só aquilo –, então ela me bate, da na minha cara com as costas da mão esquerda, me chama de ‘pueril’, eu me jogo em direção aos seus pés. O chute é certeiro. A areia só faz arder mais, sinto os grãos entrem nos poros abertos pela lâmina. Ninguém ouve o meu choro ou vê a dor.
*
Dia seguinte, quase noite, abro os classificados do jornal, marco uns três telefones, não gosto das duas primeiras vozes, a terceira ainda é ruim, mas é que mais se aproxima da de Dolores. Marcamos o preço, dou meu endereço e digo a hora.
Tenho de correr com a barba. Hoje vai ser éter.
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